O Caso Telexfree impressiona pelo gigantismo e, sobretudo, pelo exotismo. Renuncio à tentação da exposição da análise geral do assunto, para me concentrar no aspecto que guarda maior particularidade com o foco dos meus estudos: quando uma autoridade pretende escolher pelo indivíduo, suprimindo a liberdade individual sob o argumento de que ela – a autoridade – sabe mais que o indivíduo, sobre o que é bom e nocivo para a sua vida pessoal.
Em última análise, o que quero debater é se sábios do Estado sabem mais do que o cidadão, o que é bom e o que é ruim para o próprio cidadão.
Uma decisão judicial monocrática, deferida pela 2a. Vara Cível de Rio Branco Acre, determinou – na prática – a paralisação das atividades de mais de 1 milhão de cidadãos. Por consequência, milhares protestam nas ruas e na internet pelo seu direito constitucional de trabalhar.
Com a decisão, o impensável aconteceu.
O Estado considera que está cumprindo o seu dever de proteger o indivíduo contra ele próprio: proteger o indivíduo de suas aspirações de crescimento econômico, proteger o súdito de suas próprias ambições;
O indivíduo rejeita ser tratado como um incapaz, rejeita a tutela do Estado e não sabe como se livrar desta proteção indesejável: ele pede liberdade para acertar errar, para viver a vida como ela é (com erros e acertos), mas o Estado diz “não, você está proibido de errar contra você mesmo”.
O Estado alega que é sua obrigação proteger o indivíduo contra uma empresa demonizada. E este indivíduo, junta-se a milhares de outros em igual situação e vai para as ruas e para as redes sociais gritar: “EMPRESA EU TEM AMO!”
Os cidadãos afetados acreditam que as autoridades estatais estão perdidas e as autoridades estatais acreditam no oposto: que perdidos estão os indivíduos, incapazes de perceberem o mal que os acomete em perdição.
Estamos lidando com uma confusão entre quem supõe ser seu dever proteger e quem luta para não receber proteção, se protegendo de quem lhe oferece proteção: é um quadro paranoico que merece ser compreendido.
Vejamos:
1 1. O Estado pode julgar o que não consegue entender?
Nossa aparelho de produção de justiça está fortemente ancorada em pilares que simplesmente desapareceram nas últimas décadas: e a “justiça” não se deu conta de que atua no hoje com conhecimento sobre o ontem. Os fundamentos do Judiciário que desapareceram e o torna inadaptado para o novo desing social são:
a noção do tempo;
a noção do espaço;
Se o Estado é o árbitro da solução de um problema, mas se opera com déficit na noção de tempo e da noção de espaço, possivelmente virá acrescentar mais uma camada de problema ao próprio mal que visa combater: assim, ao invés de trazer a paz social, estará apenas problematizando ainda mais, simplesmente porque não consegue compreender um problema, já que opera com uma noção superada de tempo e de espaço.
Ao perder as noções conceituais de tempo e de espaço, o Estado que perdeu a compreensão dos conceitos, torna-se inapto para opinar nas relações que transcenderam suas bases cognitivas.
Se o Estado tem dificuldade de compreender o problema, está impossibilitado de julgar o que não consegue entender.
2. O Estado opera em um tempo ideal enquanto os súditos operam em tempo real.
A noção de tempo, para “os operadores do Direito”, está relacionada a uma noção de “tempo diferido”, que significa “tempo adiado”. Enquanto isso, na vida real o tempo não é diferido, é real.
Na vida real, que se processa fora dos fóruns, mais e mais seres humanos organizam-se sob uma noção de prazo absolutamente conflitante com a inerte noção de tempo diferido que preside o “judiciário”: na vida real, vige o conceito de “tempo real”.
O divórcio entre quem julga e quem está sendo julgado é emblemático: quem julga pensa em termos de “tempo diferido, tempo adiado” e quem é a julgado atua em um mundo de “tempo real”, o “real time”.
Este divórcio entre na noção de tempo dos sábios do governo e dos pobres governados, permanecerá durante toda a vida tanto de um como de outro e tem razões determinantes sobre o comportamento de ambos no agora: um pode ir para casa ao final do expediente, dedicar-se ao lazer nos fins de semana, planejar férias anuais remuneradas e contar os dias que faltam para a aposentadoria; outro vive o tempo real sob o império do agora, pensando a cada segundo quando o estado vai lhe devolver o direito de correr risco, quando a liminar será revogada...
Os cidadãos não iniciados no esoterismo da vida judicial, os que vivem de outras atividades não relacionadas ao “judiciário”, têm tremenda dificuldade de compreenderem explicações que nós, advogados, damos sobre o que acontece além das portas sagradas dos fóruns: como explicar que o processo está correndo se ele está parado h' quase um ano? Como acreditar que o processo corre na tal vara, se ele não anda?
Na prática temos que:
- A liminar interrompe as atividades de mais de 1 milhão de pessoas;
- Se tal população estiver correta – em sua liberdade de contratar e eleger riscos – e no gozo das faculdades mentais;
- Se o negócio ao qual se dedicam exige dedicação ininterrupta para lograr os resultados que almejam;
- Se é válida a afirmação de que mais de 1 milhão de pessoas tanto podem estar corretas como podem estar erradas.
Então é válida a afirmação de que mais de 1 milhão de pessoas podem estar corretas: exercitam a liberdade de contratar, escolhem legitimamente os riscos que desejam para as suas vidas, estão nos gozos das suas faculdades mentais e resolveram escolher uma atividade que exige dedicação ininterrupta para lograr os resultados que ambicionam.
Validando esta hipótese, a decisão judicial cria um problema, quando pretendia apenas evitar um problema. A este fenômeno chamo de problematizar o problema: o Estado adia o pulsar do ponteiro do segundo, enquanto o negócio desta população não admite adiamento, solução de continuidade, prazos, suspensão, pois ele foi fundado na sociedade do real time sob a lógica econômica do tempo real.
3. O quadrado do Estado é o território do Acre, enquanto o universo dos indivíduos é virtual
A noção do espaço, para o Estado, está totalmente inadequada à modelagem dos tempos atuais.
Enquanto o conceito de espaço está totalmente definido pelas fronteiras, jurisdição e territorialidade, o mundo real vive no hiper-espaço. Assim, temos até mesmo uma ausência de pacto semântico: um fala e o outro não consegue compreender o que é dito. Exemplo:
O caso suscitado no Acre com repercussão na vida de cidadãos de todo o país contem uma explicação publicada na página do Ministério Público Acreano:
“O divulgador que possui a maior rede da Telexfree no Acre revelou ao MP/AC que, no Estado, deve haver cerca de 70 mil pessoas cadastradas. Na hipótese de cada pessoa cadastrada ter aderido ao menor plano (10 contas VoIP), serão 700 mil contas para serem vendidas no Acre. Segundo o IBGE, em 2012, o Acre possuía 758,78 mil habitantes.
Por outro lado, levando-se em consideração que muitos divulgadores aderiram ao plano com maior número de contas, a conclusão é que existem no Estado mais contas para serem vendidas do que habitantes. Portanto, faltarão consumidores para adquirir o produto em questão e pessoas interessadas em entrar no negócio, o que vai levar a quebra da cadeia, que sobrevive de novos investidores.
Por isso, a prática não é sustentável no longo prazo, o que seria mais uma evidência de que se trata de uma pirâmide financeira.”
Como se vê, o argumento de que no Acre há mais contas Voip a serem vendidas do que a população atual do estado, impressiona, embora seja um argumento inapropriado para um negócio cujo substrato fático é a internet.
Para quem trabalha na internet, faz alguma diferença se ele mora no Acre e decide vender uma conta Voip para quem reside no extremo sul do Rio Grande do Sul?
Lógico que não.
E pode o morador do Acre vender uma conta Voip para um morador da China?
Sim.
Há algum fato impeditivo que determine que um residente do Acre tenha que limitar-se a estabelecer relações de negócios com seus conterrâneos? Está o Acreano proibido de vender contas Voip para um internauta que não resida no Acre?
Evidente que não.
Evidente que o argumento atribui ao negócio um carimbo de ridículo, um carimbo que o faz ter cara, perfil e cheiro de golpe.
Então, a referencia a uma população local para um negócio que pode ser global sofre de inadequação espacial.
Ora, se as 700 mil contas de Voip podem ser vendidas para qualquer outra pessoa física e jurídica que não resida no estado do Acre, porque então tal argumento é um argumento de autoridade?
Simples: porque a noção de espaço do Estado está circunscrita ao critério de territorialidade, de jurisdição, de fronteira, que faz do Estado um árbitro analógico para as relações do mundo digital.
4. O paradoxo do cidadão que – para se proteger do Estado, que quer proteger o cidadão, contra a vontade do cidadão – necessita recorrer ao próprio Estado
Para quem pensa em “tempo adiado” e “território analógico limitado”, não é problemático deferir uma liminar e impedir as atividades de mais de 1 milhão de pessoas para protege-las delas mesmas. Afinal, se o Poder Judiciário estiver errado (e todos os dias ele se auto proclama em erro, quando um tribunal modifica a decisão de um juiz), no devido prazo, quem se sentir prejudicado pela liminar pode processar o próprio Estado e recompor os danos.
O problema é que a reparação de danos provocados pelo Estado é uma promessa que mais se assemelha a um golpe contra o indivíduo, pois demora décadas e em muitos casos demanda um “tempo” maior que a expectativa de vida do ser humano lesado pelo Estado.
O problema se torna menos compreensivo para o cidadão comum, e cada vez mais até para os iniciados, se ele se convencer de que para processar o Estado do Acre deverá ir ao Acre, litigar no Acre ante o mesmo Poder Judiciário que deu causa à sua reclamação e, pior dos mundos, pagar ao próprio Poder Judiciário do Acre, recolhendo as custas do processo judicial.
É um paradoxo: dar a Cesar para reclamar de Cesar, dar a Cesar para processar a Cesar.
5. O Estado que trata Prossumidores como sendo Consumidores
Pouca gente se deu conta do golpe contra a cidadania que ocorreu quando da festejada promulgação do Código de Defesa do Consumidor. O problema é que não houve coragem para criticar.
Ainda hoje, uma década depois, quem tem coragem de escrever uma linha contra a sutra sagrada?
Eu.
O Código de Defesa do Consumidor fez o indivíduo descer dois degraus em sua escala evolutiva.
Primeiro, porque passou a trata-lo como um ser patológico: de indivíduo a consumidor há uma enorme diferença de status. Eu prefiro que me respeitem como indivíduo, embora os senhores legisladores, a mídia e o Governo, sensíveis ao interesse econômico de transformar indivíduos em clientes, tiveram enorme êxito em capturar a intelectualidade para a festa profana de sacrifício dos direitos individuais no autor sacro santo do direito do consumo.
O segundo degrau que descemos, em nossa escala evolutiva, foi descer do papel de cidadão para sermos convertidos em meros consumidores: cujo papel se limita a consumir, engolir, engordar, endividar e reclamar.
Mas eis que o impensado aconteceu: os direitos individuais e os direitos de cidadania, pareceram pouco importantes para um Estado que resolveu promover como maior um direito que é menor: o direito do consumidor.
Dez anos de orações no altar do Direito do Consumo, terminaram por estabelecer no Estado mais uma miopia: ele olha para o Prossumidor e vê um Consumidor.
Trata um Prossumidor como um Consumidor.
E julga um Prossumidor como um Consumidor.
Ao tratar A como sendo B, há um erro de sujeito. Mas se este tratamento ocorre em sede judicial, passamos a lidar com a possibilidade de um erro de Justiça.
6. E quem é o Prossumidor?
Essa pergunta não será feita por quem vive fora do quadrado analógico.
O leitor digital que habita o hiperespaço, não me formulará esta pergunta; já a terá respondido em tempo real.
Quem pode me fazer esta pergunta é o leitor jurídico. Sim, o universo jurídico é também prisioneiro da linguagem. A linguagem disponível nos manuais é insuficiente para conhecer este sujeito: o Prossumidor.
Se saímos das folhas dos autos e migramos para as páginas acadêmicas, o problema se agrava: neste universo o Prossumidor não existe;
Então, quem de fato é o Prossumidor?
Ora, se tal pergunta será feita pelo leitor com lentes jurídicas é sinal que estamos há léguas de poder julgar aquele sujeito que sequer desconhecemos existir.
Então, antes de qualquer aventura, melhor reconhecer como existente este ser que está nas redes sociais e nas ruas a reclamar que reconheçam a sua existência.
6. E se uma população de 1 milhão e meio de Prossumidores estiver sendo enganada
Se o Governo estiver certo ele estará errado.
Lógico. O Governo autorizou a instalação e o funcionamento de uma pessoa jurídica que opera um serviço de comunicação e dados sujeito a normas específicas; este mesmo Governo recebeu milhões em tributos. Se o Governo estiver correto em atribuir o status de “ilícito” ao negócio questionado, temos que o Estado permitiu que esta pessoa jurídica simplesmente enganasse 1 milhão e meio de seus súditos. A pergunta impertinente é: o que fazia o Governo durante este tempo todo?
Burocratas dirão que uma Junta Comercial não é responsável porque ela somente arquiva documentos. Errado. Taxas e custas são pagas às Juntas Comerciais e tal não se faz apenas para que funcionem com caixas de arquivos. As Juntas Comerciais não são observadores da cena. Acaso, pode o indivíduo registrar uma sociedade com objeto social dedicado ao crime de tráfico de drogas? Lógico que não, o contrato social será recusado. Consta na decisão do agravo de instrumento do Tribunal de Justiça do Estado do Acre referência à liminar monocrática que diz que a TelexFree recolheu mais de 71 Milhões de reais, nos últimos três meses, referente ao imposto de renda retido dos repasses aos seus divulgadores: o que significa que os desprotegidos e hipossuficientes consumidores divulgadores pagaram mais de 71 MILHÕES de imposto de renda em apenas 3 meses: é possível acreditar que precisam de proteção? Consta dos autos - tanto no Agravo na 2a. Câmara Cível do TJ/AC, quanto na Medida Cautelar - que a empresa distribuiu aos seus divulgadores mais de 800 MILHÕES nos últimos 11 dias.
Os desprotegidos receberam 800 MILHÕES nos últimos 11 dias e agora recebem a proteção Governamental.
Supondo que uma empresa pagasse CENTENAS DE MILHÕES aos seus “divulgadores” e estes pagassem DEZENAS DE MILHÕES de imposto de renda decorrente da atividade relacionados à práticas criminosas, seria possível tais eventos ocorrerem sem que o Estado soubesse?
Como se vê a atividade questionada exigiu a movimentação de enormes capitais. Nosso sistema legal contempla normas rígidas que impõem um controle rigoroso sobre a movimentação de vultuosos capitais. Acaso a movimentação milionária não foi detectada nos radares governamentais. E o que estava fazendo o Governo que não governou o problema enquanto este se formava?
A resposta a esta pergunta esclarece a incômoda afirmação; mesmo que o governo esteja certo, ele também estará errado: ao governo não resta outro papel senão o de atuar na justa medida, quando governa demais ele interfere onde não lhe é dado interferir; quando governa de menos ele deixa que pequenos problemas se transformem em grandes conflitos. Afinal, não lhe é dada outra opção senão manifestar-se exclusivamente na justa medida.
Concluindo:
A decisão polêmica supõe que a atividade da empresa é ilícita.
Como não existe tributação sobre atividade ilícita, temos que:
- toda a tributação havida sobre as receitas da empresa é indevida;
- toda tributação havida sobre as receitas recebidas pelos divulgadores, é indevida;
Concluímos que:
Se o Governo estiver correto, o dinheiro está nos cofres do próprio Governo para que o Governo devolva aos supostamente lesados, o que diminui o perfil do risco alegado para a decisão que diz proteger quem diz que não quer ser protegido.
E se o Governo estiver errado, bom, será mais um caso de ir a César para processar a César.
texto de Dr. Nacir Sales
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Dr. Nacir Sales, advogado inscrito na OAB-SP e filiado à AASP. Nasceu em Minas Gerais e é radicado na Grande São Paulo, na região de Alphaville onde mantém escritório. Escritor, publicou 27 livros. Doutorando em Direito Civil na Universidade de Buenos Aires, Especialista em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas - FGV/Escola de Direito de São Paulo, com formação em "Negociação" pela Fundação Getúlio Vargas/São Paulo, “Formación de Postgrado en la Universidad de León – España – curso: Historia de la Ciencia - Origenes de la Imagen Moderna del Mundo“, Operaciones Patrimoniales entre las Sociedades e sus Proprietarios - Universidad de la República, Recuperação de Empresas e Falência sob a ótica da nova legislação falimentar pela EDESP/FGV, Direito Material Tributário I PUC/SP e Teoria Geral do Processo II, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, concluído com o grau 10.
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